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Segue abaixo, texto do Prof. Dr. Júlio Groppa Aquino, que nos foi entregue durante a reunião:
A autoridade docente e as interrogações do presente democrático
Julio Groppa Aquino
Faculdade de Educação da USP
Numa obra de 1935 e publicada no Brasil quase três décadas mais tarde sob o título Disciplina preventiva, Louis Ribolet propõe-se a tecer um arrazoado sobre as bases da autoridade docente. Nela, o pedagogo francês, professor de filosofia e autor de obras de vulto à sua época, traz à baila um conjunto de critérios balizadores para aqueles que pretendessem se devotar ao ensino.
O que dá autoridade, não são os anos, nem a elegância do porte, nem o tom e o timbre da voz, nem as ameaças, nem até os castigos; é antes e principalmente a disposição inalterável de bom humor, a decisão inabalável e mansa, um modo de agir impregnado de bom-senso e criterioso, afastado de caprichos e violências (1961, p.29).
Como se pode atestar, a primazia de atributos como bom humor, concórdia, discernimento e, sobretudo, rejeição ao emprego de expedientes punitivos, revela-se surpreendente, levando-se em conta o nexo marcadamente disciplinarizante do ensino de então, muitas vezes entrecortado pela prática de castigos físicos.
Imbuído pelos ventos reformistas das primeiras décadas do século passado, Riboulet aponta duas dimensões complementares, porém distintas, de uma tão necessária quanto suficiente ascendência do mestre sobre seus alunos: a autoridade-função e a autoridade moral, sendo a primeira um privilégio adquirido, e a segunda, uma missão. No entanto, “vai, entre as duas, profunda diferença. Abismal. A primeira é apanágio do mestre. [...] Será preciso juntar-lhe a autoridade moral, que se adquire pouco a pouco, ao passo que se vai consolidando o prestígio do mestre” (p.30).
Mas por que a primeira dimensão, sozinha, não bastaria ao intento pedagógico? A resposta é-lhe óbvia: “O menino é finório, ladino. Primeiro, quer experimentar as reações do novo mestre. Usa infinidade de artes e tramóias, para ver se consegue implantar a desordem. Triunfar. A autoridade-função, portanto, não basta” (p.30). E será, a seu ver, apenas o prestígio do professor que poderá fazer frente às veleidades de rebeldia dos alunos.
Em seguida, apresenta um conjunto de conselhos práticos para os professores, tendo em vista o corolário segundo o qual “com a autoridade, impera a ordem; com a autoridade, aparece a estima, o respeito, a obediência; e fica possível a educação” (p.28). O que se vê aí despontar é uma atenção expressamente preventiva aos contratempos disciplinares que assombrarão, de um modo ou de outro, o ofício docente. Tratar-se-á, então, de se antecipar à sua ocorrência, aplacando-os, quiçá extirpando-os.
Retomemos as prescrições de Riboulet, na íntegra.
1. Logo em vosso contato inicial com os meninos, apresentai-vos afoutos, e às tentativas dêles contra a ordem, respondei firmemente sem ira nem fraqueza.
2. Não gasteis muito tempo para elaborardes uma resolução: mandai decididamente, de modo calmo, claro, preciso, como quem sabe perfeitamente o que deseja e quer. Não apareçais jamais feito mendigos que esmolam favores da docilidade, do respeito, da obediência; vossa vontade é que se deve impor à vontade do menino;
3. Não vos amedronteis com dificuldades que deparardes no começo; pensai que não são insuperáveis, que breve as debelareis. Olhai para a frente, atirai-vos às ondas, que haveis de nadar. E fato averiguado pela experiência: aos valentes atilados ocorre a inspiração adequada exatamente na hora de agir.
4. A posição social do menino não é igual à vossa: não procureis viver com êle como se fôsse colega vosso; houvéreis de sofrer prejuízos. Sempre observai as praxes.
5. Concebei idéias corretas quanto à autoridade. Ela serve para o proveito dos subordinados: o vinhateiro ou o floricultor usando da tesoura de podar, machuca a planta, e é para maior benefício e rendimento dela. Tendes em mãos a autoridade, não será para mutilar senão para adestrar e para enriquecer a personalidade do menino.
6. Não pretendais granjear já e já as simpatias; não ambicioneis popularidade fácil e rápida, fazendo desde logo concessões excessivas: ficaríeis logrados depois.
7. Usai de vossos direitos: nos vos oculteis na penumbra. Não tolereis as fantasias do menino; quanto mais satisfações se lhe propinam, tanto mais exigências novas apresenta. Uma fraqueza, ainda que mínima, acarretaria desordem; a menor longanimidade inoportuna redundaria lesiva à vossa autoridade. O menino acata os fortes e despreza os pusilânimes.
8. Preservai vossa autoridade de qualquer ofensa; não deixeis impune, nunca, algum ato vergonhoso: mentira, murmuração ou maledicência, calúnia, irregularidade de nenhum quilate; além disso, evitai os têrmos da gíria ou muito jocosos: manchariam vossa boa fama. Quando tiverdes de infligir algum castigo, fazei-o sem melindre dos briso do aluno, pois o que intentais neste tratamento cirúrgico é obra de salvação.
9. Exigir, por parte dos alunos, as devidas fórmulas e usanças da cortesia; usai, vós mesmos, tôdas as maneiras polidas e deferências para com eles; fugi de familiaridades exageradas; não os tratei por “tu”; o mestre que o fizer, “não demorará sem que seja pago na mesma moeda”.
10. Muito cuidado com vossas atitudes. Ajudam bastante as exterioridades: o traje correto e sempre asseado realça a dignidade. Maneiras comedidas e distintas, porém sem afetação agradam bastante: simbolizam o respeito e incitam os alunos à imitação (p.31-32).
As providências de Riboulet não deixam dúvida quanto ao substrato de força – e, vale frisar, em dupla mão – que não apenas entrecortaria a relação pedagógica, mas que lhe seria constitutivo. Encarnar o papel docente com bravura, diligência e segurança de espírito seria, assim, condição sine qua non para o êxito da empreitada. Note-se, porém, que nenhum dos conselhos do pedagogo dirige-se ao âmbito propriamente epistêmico.
Em 2003, Philippe Perrenoud, uma das figuras mais emblemáticas do cenário pedagógico globalizado, organizou um compêndio – publicado dois anos mais tarde no Brasil – intitulado A escola de A a Z: 26 maneiras de repensar a educação. O verbete autoridade, que inaugura o livro, é assinado por Oliver Maulini. Nele, o professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação de Genebra formula uma definição na qual persistem semelhanças e irrompem diferenças em relação àquelas de Riboulet.
Os pesquisadores que os interrogam [os alunos] mostram, por exemplo, que o “bom professor”, para eles, é um professor que sabe “ensinar bem”, “explicar bem”, “fazer com que se compreenda bem”, em suma, um professor competente. Um professor “legal” e “disponível” também. Mas é principalmente um professor “exigente e imparcial”, um professor que exerça uma “autoridade justa”, sem “abusar de seu poder”. O bom professor, em resumo, é compreensível e compreensivo, não renuncia a suas responsabilidades, exerce sua autoridade, mas não abusa dela. Porque ele assume plenamente essa autoridade, os alunos autorizam-se a aprender, não se submetem à sua onipotência, mas progridem para substituí-lo um dia (PERRENOUD, 2005, p.22).
Se subscrevêssemos a perspectiva acima, eivada por matizes finalistas, restar-nos-ia apenas admitir que qualquer esforço de análise do éthos docente na atualidade redundaria em algo supérfluo, mediante o inabalável consenso acerca da conduta de um professor, segundo o qual sua autoridade residiria numa espécie de circularidade voluntarista: se ensinar bem, sem abusos e com responsabilidade, passará a ser detentor de prestígio com seus alunos; se não, estes renunciarão a seu papel, desautorizando-se a obedecê-lo e, portanto, desobrigando-se de aprender. Bastaria, portanto, desempenhar seu papel de modo competente para angariar a aquiescência do alunado, evitando-se, com isso, que a engrenagem pedagógica conhecesse sobressaltos, descontinuidades.
Prossegue o teórico belga, acrescentando um novo e decisivo fator à equação da autoridade: trata-se de uma relação de poder que, agora, visando à emancipação do alunado, deve ser constantemente legitimada por este. Para que venham a ser autorizadas, as ações docentes deverão contar com uma participação ativa do outro. Em outros termos, a autoridade de um professor deveria ser secundada por um modo de agir expressamente democrático/democratizante.
Um poder legítimo, em democracia, é um poder negociado, discutido, institucionalizado. Não é o poder do mais forte ou do mais esperto, mas o poder de uma pessoa “autorizada” a exercer a autoridade. [...] As regras fixadas, se quiserem “impor-se”, devem ser conhecidas e reconhecidas por todos. Devem ser justas e justificáveis. Não devem repousar sobre o poder discricionário de cada adulto, mas sobre uma política ajustada, única garantia de um mínimo de objetividade. Não devem ser negociadas com os alunos, mas devem instaurar espaços de liberdade, de responsabilidade e de debate, espaços que auxiliem e que obriguem, ao mesmo tempo, a deixar o face a face assumindo a proibição da lei: identificar e mostrar conflitos, buscar soluções para resolvê-los, inventar regras e novas instituições, avaliar e criticar seu impacto, em suma, preparar, exercendo-o, o “patriotismo constitucional” de que fala Habermas. Essa ética democrática é exatamente o contrário de uma “demissão” dos professores. Ela requer mais exigência, mais cooperação, mais competências e mais saberes. Mais autoridade, em suma (p.22).
Alinhada a tal diapasão discursivo, a maior parte das discussões contemporâneas acerca da temática da autoridade no meio educacional, quer nos parecer, valer-se-ão de um recurso argumentativo de acordo com a qual serão democráticas as iniciativas em que os alunos, antes meros receptáculos da intervenção docente, passarem a ser igualmente responsáveis pela tessitura da ambiência normativa das salas de aula.
Tal perspectiva terá na figura emblemática de Paulo Freire, talvez, sua expressão plena. Numa entrevista concedida no final da década de 1980 (D´ANTOLA, 1989), o eminente educador deixa claro seu ponto de vista sobre a questão. Para ele, não se trataria de disciplinar os alunos, mas de agir de modo tal a que eles próprios se autodisciplinassem, o que exigiria uma forte crença da parte deles na palavra e no testemunho das figuras de autoridade com as quais travam contato em sua lida diária: pais e professores. Para tanto, dois expedientes, situados em extremidades opostas da cultura, deveriam ser combatidos: o autoritarismo e a licenciosidade.
No caso brasileiro, hoje, para falar só no Brasil, um dos problemas que a gente tem é essa confusão que é a cultura machista, que é a cultura autoritária. O brasileiro é tradicionalmente autoritário. É incrível a confusão entre autoritarismo e expressão viva da autoridade. É preciso separar esse “traço” e criticar, dizer não. A autoridade é necessária como a liberdade. É preciso deixar de aceitar de um lado o autoritarismo e, do outro, a licenciosidade. Porque na licenciosidade tu também não tens a liberdade, tu tens anarquia (p.5).
Crivado, de um lado, pela memória de um passado opressivo e, do outro, pelo fantasma de um futuro em desgoverno, o presente escolar, não obstante frequentemente reputado como defasado ou mesmo incompatível em relação às demandas do mundo democrático, teria a missão precípua de, paradoxalmente, representar uma antecâmara desse mesmo mundo. Por meio do emprego de um tipo de autoridade não arbitrária, caberia aos docentes forjar um tipo renovado de ordenação das regras e convenções escolares, agora não mais impostas de modo heteronômico – não mais opressivas ou autoritárias –, mas consoantes a um agir inclusivo, equitativo, justo enfim; sempre com vistas ao despertar de uma consciência crítica, desmistificadora e emancipatória dos atores sociais envolvidos. Daí a conclamação inconteste de uma humanização temperante das relações entre seus protagonistas.
Caber-nos-ia, entretanto, indagar: teríamos encontrado, na exortação de um princípio de ação dito democrático, a pedra filosofal de todo o trabalho educativo? Residiria aí o equacionamento – não menos vago do que ambicioso – de todas as suspeitas que fustigam as existências docentes, quando do endereçamento às novas gerações?
Ora, mais do que um truísmo de época, a unanimidade retórica em torno de ações educativas partilhadas, cooperativas, dialógicas etc. finda por se converter num imperativo politicamente correto, mas empiricamente neutro, sobretudo quando entram em cena as intrincadas injunções da instituição escolar na atualidade.
Segundo os próprios agentes escolares, o exercício factível de sua autoridade profissional, na contramão de qualquer traço de idealização, encontrar-se-ia sob constante ameaça e, em alguns casos, ruína, já que sua lida seria atravessada por um sem-número de chamamentos de diferentes ordens, muitas vezes tidos como sobrecarga ou empecilho em relação às suas atribuições ordinárias, antes circunscritas ao bem ensinar; chamamentos oriundos exatamente dos ditames da contemporaneidade democrática – seja no que se refere à difícil delimitação das fronteiras da ação pedagógica (o que ensinar?), seja no viés do pluralismo participativo de seus ocupantes (como ensinar?).
No primeiro caso, partindo da premissa de que a escola republicana erigiu-se política e historicamente como uma espécie de fiel depositário e, ao mesmo tempo, polo irradiador de uma cultura comum a que todos os cidadãos teriam direito, o sociólogo François Dubet (2008) apresenta uma longa lista de questões à espera de resposta, desvelando as ambiguidades constitutivas do projeto de formação escolar – em larga medida, análogas ao caso brasileiro – que, queiramos ou não, o presente democrático mostra-se longe de ser capaz de equacionar.
O que deve saber e saber-fazer o mais desprovido dos alunos a fim de que a escola, no que concerne à sua responsabilidade, lhe possibilitasse levar uma vida considerada boa? Aqui a questão do justo desaparece diante da do bem. O que deve saber um cidadão hoje? Quais são as capacidades de base (ler, escrever, contar...), os conhecimentos gerais e as competências cognitivas indispensáveis para enfrentar o mundo e continuar a sua formação? Como definir o civismo e o sentimento de pertencimento a uma comunidade nacional e européia? Que competências práticas deve possuir não importa que aluno egresso da escola? A informática e o direito fazem parte disso, como a capacidade de falar em público? Que língua(s) estrangeira(s) se deve conhecer? Que valores comuns e que capacidades críticas deve adquirir cada aluno se não se quer deixar para a TF1 e para a M6 [canais da televisão francesa] a formação de cidadãos, e quando se sabe que o sentimento de “competência política” está ligado ao nível de instrução? (p.80)
No segundo caso, uma situação concreta exemplar é oferecida por Anne Barrere e Danilo Martucelli (2001), no que se refere às formas da narratividade em circulação nos meios escolares: de um lado, a transmissão dos saberes canônicos, apoiada na cultura escrita e ditada unicamente pelo professor; do outro, o universo da comunicação interpessoal dos alunos e sua trivialidade característica, condicionadas, ambas, por aparatos visuais/orais e pela troca igualitária e volátil entre os pares.
Se antes a autoridade de um professor era sustentada, bem ou mal, por comandos compulsórios de obediência e de respeito, a reboque de uma estratificação discursiva verticalizada, agora o advento de práticas comunicacionais simétricas, ao lhes conferir igual direito à palavra, teria operado consequências irreversíveis sobre o diagrama das trocas entre os parceiros escolares.
A começar pelas modificações que acarretam na relação com a autoridade, que se torna, antes mesmo de qualquer discussão acerca de sua legitimidade ou da legitimidade das normas, uma questão de reciprocidade relacional. Os alunos exigem respeitos horizontais. Para eles, a relação pedagógica correta tem uma natureza igualitária e supõe um respeito mútuo e um equilíbrio dos sentimentos. A maioria dos alunos não contesta os alicerces da autoridade, mas pede um tratamento recíproco, exigência incontornável, anterior ao universo de comunicação em que estão imersos (p.269-270).
Temos aí uma significativa exemplificação do impacto dos modos de vida contemporâneos sobre o modus faciendi escolar, redundando num tipo de autoridade de seus agentes construída – para o horror de Riboulet, pode-se deduzir – não mais pela fidelidade diligente a uma narratividade onisciente e onipotente, mas a partir de jogos de reciprocidade dialógica difusos, horizontalizados e policêntricos, a tal ponto que “a relação pedagógica não seja exclusivamente fundada na oposição entre quem sabe e quem ignora, mas que possa contemplar a reversibilidade dos papéis educativos. Ou seja, os professores precisam aprender a aprender com os alunos” (CANÁRIO, 2006, p.23).
Sinais dos novos tempos? Evidências de um presumível progresso civilizatório? Conquistas democráticas irreversíveis?
Não se poderia dizer tanto. Bem menos entusiastas são Pierre Bourdieu e Patrick Champagne (BOURDIEU, 1997), ao apontarem as contradições inerentes à escolarização de massa como prática social aberta a todos e, ao mesmo tempo, reservada a poucos; prática que lograria “[...] a façanha de reunir as aparências da ‘democratização’ e a realidade da reprodução, que se realiza num grau superior de dissimulação, e por isso com um efeito maior ainda de legimitimação social” (p.485).
Para eles, a experiência sistemática de fracasso dos alunos oriundos de famílias pobres teria sido responsável por reações múltiplas de resistência à institucionalização escolar, gerando não apenas desqualificação da autoridade docente, mas também a produção de uma imagem de si “duramente arranhada ou mutilada” (p.484) por parte do alunado, condenado a oscilar entre “a submissão ansiosa e a revolta impotente” (p.485). Trata-se aqui, precisamente, dos excluídos do interior escolar.
Acabou o tempo das pastas de couro, dos uniformes austeros, do respeito aos professores – todos sinais externos da adesão, que os filhos das famílias populares sentiam em relação à instituição escolar, e que hoje se transformou numa relação mais distante: a resignação sem ilusão, mascarada em indiferença impertinente, é evidente na pobreza exibida do equipamento escolar, a tira elástica para segurar os cadernos, as canetas descartáveis que substituem a pena e a caneta-tinteiro, nos sinais de provocação em relação ao professor, como o walkman levado até a classe, ou as roupas, cada vez mais folgadas, com mensagens estampadas, como o nome de grupos de rock, que querem lembrar, dentro da própria Escola, que a vida verdadeira está fora daí (p.485-486).
Crítica igualmente inclemente é aquela tecida pelo crítico literário e filósofo George Steiner (2005). Numa das obras, a nosso ver, mais impactantes sobre o ofício docente – Lições dos mestres –, ele assim reputa o ensino oferecido às novas gerações:
Milhões de pessoas tiveram e têm suas experiências da matemática, da poesia, do pensamento lógico aniquiladas por um ensino assassino, pela mediocridade talvez subconscientemente vingativa de pedagogos frustrados. [...] A maioria daqueles a quem confiamos nossos filhos na escola secundária, daqueles em quem procuramos orientação e exemplo na universidade, são, em maior ou menor intensidade, gentis coveiros. Esforçam-se por reduzir o interesse de seus alunos a seus próprios níveis de tédio e indiferença (p.31-32).
As incisivas análises de Bourdieu/Champagne e Steiner obrigam-nos, enfim, a indagar: qual a razão de ser do coro onipresente de que as escolas se consagrem como epicentros da vida democrática, o celeiro do futuro, o berço de uma sociedade mais esclarecida, mais justa e, por fim, mais humana? Dito de outro modo, a que se presta a defesa de uma escola sempre fulgurante, embora de todo ausente?
Uma resposta factível a tais questões é oferecida por José Mário Pires Azanha. Expoente da filosofia da educação brasileira, Azanha, já na década de 1970, dedicou-se a analisar os dilemas da democratização escolar, alertando sobre a migração indiscriminada da ideia de democracia (oriunda do domínio das instituições políticas) aos modos de organização pedagógico-burocrática, o que findaria por gerar distorções quanto aos propósitos nucleares da educação formal.
Para tanto, propõe um discernimento radical entre duas apropriações possíveis da noção de democracia nas escolas: como extensão de oportunidades a todos (por meio do acesso à produção cultural e aos códigos dominantes do mundo adulto), ou como expressão da liberdade do educando (por meio do exercício da autonomia infantil/juvenil, resistente, por sua vez, à coerção do mundo adulto).
Segundo ele, supor a democracia escolar como vivência do arbítrio individual de seus protagonistas redundaria num faz-de-conta pedagógico, na expressão do autor. Não se poderia, portanto, encarar termos como liberdade e igualdade como atributos individuais, mas como fatos do mundo político, já que a democracia se forja num espaço público de participação social, nunca no plano do livre arbítrio individual. Por isso, Azanha denuncia o simulacro pedagógico aí embutido, já que “o jogo de forças e de interesses que move a vida política é irreproduzível no âmbito da escola” (1987, p.40).
Mais ainda: quando as crianças são “deixadas a si mesmas, não se elimina a autoridade, apenas se substitui a sua fonte e sua força” (p.57), o que as levaria a se sujeitarem à tirania da maioria – o oposto do modo de vida democrático, portanto. Paradoxalmente, essa espécie de jogo de faz-de-conta poderia acarretar um efeito de esvaziamento do primado político quando subjugado pelo exercício das vontades individuais.
Azanha é taxativo: não se pode conceber uma sociedade democrática como mera reunião de homens livres formados por escolas democráticas; menos ainda que ela seja reflexo imediato dos indivíduos que a compõem. “Democracia se refere a uma situação política, social e econômica que não se concretiza pela simples associação de indivíduos democráticos” (p.38). Daí que a noção de democracia escolar, assim como entendida na maioria das vezes, acabaria figurando como uma reprodução quase caricatural dos mecanismos preexistentes no âmbito político, em especial daquelas práticas de ordenamento legislativo e judiciário da sociedade. Cada escola tornar-se-ia, assim, uma espécie de cidadela-Estado, segundo o autor.
Seria preciso, pois, recusar a estratégia de mimetismo dos mecanismos ordenadores da democracia política quando da tomada de decisão no cotidiano escolar, atentando para as naturezas singulares e os planos organizativos necessariamente distintos das instituições políticas e sociais. Caso contrário, o risco imediato é o da desrritualização das rotinas próprias à escola, assim como o do esvaziamento dos papéis e funções de seus protagonistas. Ademais, o conhecimento ofertado findaria por ser eclipsado, deixando de ser encarado como o regulador preponderante das relações escolares.
É certo que, numa sociedade que se pretenda democrática, não se pode conceber a noção de autoridade docente como algo prévio e imutável, mas como um atributo provisório, oscilante, sempre em construção. Trata-se de caminhos que são construídos e reconstruídos paulatinamente na medida em que professores e alunos se dispõem a fazê-lo por meio de um esforço comum, sem que isso implique erosão dos jogos de forças aí imanentes. Senão, o efeito insidioso é a falência das narrativas escolares, estas necessariamente assimétricas.
Trocando em miúdos, a árdua e lenta reapropriação do legado cultural pelos mais novos, objeto precípuo do trabalho das gerações mais velhas, é condição sine qua non para a tão almejada emancipação ulterior das novas gerações – algo que principiaria no plano das destrezas escolares e se alastraria, mais tarde, para o domínio da participação na vida pública.
Trata-se, assim, de fomentar entre os alunos uma sólida efervescência intelectual, a qual se transmutaria, mais tarde, na espinha dorsal de certo espírito público. O que importa, pois, é o dever laborioso de ensinar a pensar o presente pelas mãos do passado – único meio de preservação do mundo que nos antecedeu e que nos sucederá.
Em suma, educar para a democracia significaria menos continência aos difusos impulsos infantis/juvenis, e mais lapidação intelectual dos mais novos para a admissão no mundo dos feitos humanos e sua complexidade característica.
Referências
AZANHA, José Mário Pires. Educação: alguns escritos. São Paulo: Ed. Nacional, 1987.
BARRERE, Anne; MARTUCCELLI, Danilo. A escola entre a agonia moral e a renovação ética. Educação & Sociedade, ano XXII, n.76, p.258-277, out. 2001.
BOURDIEU, Pierre. (Coord.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997.
CANÁRIO, Rui. A escola tem futuro? Das promessas às incertezas. Porto Alegre: Artmed, 2006.
D’ANTOLA, Arlette. (Org.). Disciplina na escola: autoridade versus autoritarismo. São Paulo: EPU, 1989.
DUBET, François. O que é uma escola justa? A escola das oportunidades. São Paulo: Cortez, 2008.
PERRENOUD, Philippe et al. A escola de A a Z: 26 maneiras de repensar a educação. Porto Alegre: Artmed, 2005.
RIBOULET, Louis. Disciplina preventiva. São Paulo: Editora do Brasil, 1961.
STEINER, George. Lições dos mestres. Rio de Janeiro: Record, 2005.